O espírito do champanhe é alegre, mas existem categorias destas borbulhas de elite onde a coisa ganha ares mais sérios. Falo dos champanhes millésimés, que trazem a indicação de sua safra - estes são mais sérios, encorpados, de guarda, para meditar ou acompanhar o prato principal em refeições.

Atualmente, os millésimés correspondem a 2,4% da produção total da região. O restante é de champanhes "sans année" (ou "sem ano", elaborados com mistura da safra mais recente com colheitas anteriores.

Os millésimés ou vintages são frutos de uma única e excepcional colheita. Esta categoria, contudo, nem sempre existiu. O mais comum na região, de clima frio, sempre foi misturar as safras, para daí conseguir qualidade mais consistente. Não há registros de uma data precisa para o nascimento dos millésimés, que se situa no início do século XIX. Sabe-se, contudo, que os primeiros exemplares eram comercializados sem trazer indicação do ano de colheita nos rótulos ou nas rolhas. Como fraudes começaram a surgir, a prática de colocar o ano de produção - primeiramente nas rolhas e depois nos rótulos - foi ganhando força.

As primeiras garrafas que traziam em suas rolhas o ano da colheita teriam sido de 1834. Ocasionalmente, os rótulos também ostentavam tal informação. Esta prática, contudo, só se tornou mais comum a partir dos anos 1870.

Mesmo sem constar dos rótulos, muitas grandes safras do século XIX ficaram famosas. Registros históricos consideram excepcionais os millésimés 1802, 1804, 1811, 1818, 1819, 1822, 1825, 1832, 1834, 1842, 1846, 1857, 1862, 1865, 1868, 1870, 1874, 1880, 1889, 1892, 1893 e 1899.

O século XX começou com uma seqüência de grandes anos: 1900, 1904, 1906, 1911, 1914, 1920, 1921, 1923, 1926, 1928 e 1929. Outra seqüência famosa é da década de 1950: 1952, 1953, 1955, 1959. James Bond pediu, mais de uma vez, algumas destas safras em seus filmes, como um Dom Pérignon 1953 (em "007 Contra Goldfinger", de 1964) e um Dom Pérignon 1959 (em "Com 007 Só Se Vive Duas Vezes" de 1967), por exemplo.

Em recente conversa com o novo chefe de cave da maison Veuve Clicquot Ponsardin, Dominique Demarville, ele me relatou ter provado um destes lendários millésimés. Em 2002, Demarville degustou um 1921, que "estava ainda muito fresco, com uma tremenda mineralidade e uma extraordinária complexidade, mostrando a capacidade da região de Champagne de produzir vinhos de longa guarda". A Veuve Cliquot fez seu primeiro millésimé em 1810 e ainda guarda em suas caves algumas garrafas da safra de 1893!

Testei às cegas seis millésimés. Além dos destaques, confira:

Gosset Grand Millésime 1999 (Expand, R$ 398, 93/100). Aromas intensos e
complexos, cítricos (limão), nozes, leveduras, mel, especiarias, baunilha, flores brancas, manga, maçã, damasco, fundo mineral, com toque de evolução. Paladar de grande estrutura, acidez crocante, boa profundidade, longa persistência.

Ayala Millésimé Brut 1999, (Mistral, US$ 146. 92/100). Aromas com muitas leveduras, tostados, amêndoas, nozes, brioche, mel, maçã, cítricos, toque de flores, especiarias, gengibre. Paladar sério, seco, estruturado por acidez firme, crocante, equilibrado, com ótima cremosidade e muita elegância. Para guarda e para gastronomia.

Veículo: Gazeta Mercantil