*Por Wagner Hilário
Exclusiva traz a visão do varejo e a história de vida, empreendedorismo e liderança associativa de uma das principais figuras do setor no Brasil, o comendador Levy Nogueira
Presidente do grupo de varejo DMA (a maior rede de supermercados do Estado de Minas Gerais), fundador da Associação Mineira de Supermercados (Amis), presidente da Abras entre 1991 e 1994 e comendador da Ordem do Mérito dos Supermercados, condecorado durante o último Jantar do Dia Nacional dos Supermercados, em 8 de novembro deste ano. Com essa honraria, a mais alta distinção concedida pela Abras, Levy Nogueira passa a integrar um restrito grupo, que tem apenas Arthur Sendas e João Carlos Paes Mendonça, ambos também ex-presidentes da entidade.
De fato, Levy Nogueira é figura notória no universo supermercadista, mas basta dois dedos de prosa para perceber que é muito mais e que a visão panorâmica que temos da cobertura do hotel em que ele está hospedado na zona sul da capital paulista, e onde o entrevistamos, revela bastante de sua personalidade. Mais que empresário e líder de classe bem-sucedido, Levy mostra uma sabedoria espontânea e um amplo e particular entendimento não apenas do negócio em que atua, mas da própria essência humana.
“As pessoas são diferentes, mas, basicamente, todas querem, à sua maneira, fazerem-se presentes no mundo. Eu acho que quem tem saúde física e mental precisa construir mais do que consumir para se fazer presente de fato. É algo até econômico e ecológico. A meu ver, toda a missão de vida envolve a construção de algo. Só consumir é muito triste, deve trazer um vazio à pessoa. Não estou dizendo que não se deve usufruir; apenas que temos de construir mais. Procuro pautar minha vida por esse princípio.”
Aos 72 anos, Nogueira pode dizer que está construindo — “sempre com ajuda de outras pessoas” — um lindo e memorável edifício de empreendedorismo e conhecimento, fazendo das adversidades e infortúnios da vida tijolo e cimento para a sua obra existencial.
Nascido em 1940, no arraial de Lagoa, município de Pequi, a 100 quilômetros de Belo Horizonte (BH-MG), “numa casa de ‘chão batido’, piso de terra”, Nogueira conheceu o comércio muito cedo, mas também cedo conheceu a perda de um ente querido. “Meu pai [Levi] já era comerciante na década de 1930 e 1940. O comércio da época e da região era o escambo. O sonho dele era levar a família para BH e montar um negócio. Fez isso quando eu ainda era bem pequeno.”
Levy Nogueira se lembra com saudade daquele período. “Meu pai tinha uma barraca numa feira permanente e fechada de BH. Lembro-me que, já antes dos nove anos, eu saía da escola, pegava o almoço e levava para ele. Ficava o resto do dia na barraca com ele. Essa experiência no comércio, tão jovem, me marcou. Ali me apaixonei pela atividade de comerciante.”
Porém, o imponderável sobreveio. “De uma forma muito triste, com apenas 49 anos, meu pai sofreu um acidente de trânsito e faleceu. Eu era um menino de nove anos.” Se não bastasse a tragédia da morte do pai, quatro anos depois, a família Nogueira perderia também a mãe. Caberia aos dez filhos — Levy era o sétimo; o mais novo tinha apenas quatro anos —, cuidar do negócio que os pais lhes havia deixado de herança.
“Meus irmãos mais velhos [quando da morte da mãe, Gil tinha 22 e João Nogueira, 20] conduziram o negócio por muito tempo, mas todos nós trabalhávamos na empresa, as cinco irmãs e os cinco irmãos.” A empresa cresceu, passou de barraca de feira para mercearia, depois para mercearias e, em 1959, foi firmada sociedade entre os cinco irmãos homens e fundada oficialmente o EPA (Empresa Popular de Alimentos), que na ocasião já tinha 18 mercearias.
“A vida é paradoxal. A morte dos meus pais, que poderia sentenciar a nossa tragédia em vida, nos uniu de tal forma que criamos uma empresa que hoje tem 53 anos e os sócios são os mesmos desde o princípio. Divergências acontecem e aconteceram, mas jamais a separação.” O feito dos filhos da família Nogueira sem dúvida impressiona, mas Levy ainda acha pouco. “Acredito que meu pai, onde quer que esteja, está satisfeito conosco. Mas quando lembro o que ele fez [sair do interior com a família inteira, sem saber no que ia dar e com poucas economias], ainda acho que estou devendo.”
A personalidade equilibrada e a visão panorâmica que tem fazem de Nogueira um líder nato. Apesar de dizer abertamente que não gosta muito da atividade política, com apenas 30 anos de idade foi um dos principais articuladores da fundação da Associação Mineira de Supermercados (Amis). Aos 32, mesmo sendo o quarto dos cinco irmãos homens, foi alçado à direção da empresa da família, com o objetivo de tirá-la de uma crise financeira que poderia significar sua falência.
“Eu acreditava que a solução era a modernização das lojas. Meus irmãos achavam que eu estava querendo colocar uma metrópole dentro de uma cidade de interior.” Mas acabaram dando o braço a torcer. Em menos de 20 meses, Levy Nogueira fechou algumas lojas que não podiam virar supermercado e as demais mercearias foram todas transformadas em autosserviço. Assim nasceu a maior rede de supermercados de Minas Gerais, hoje com 94 lojas, presença em dois estados brasileiros (Espírito Santo) e faturamento de mais de R$ 2 bilhões.
Para Nogueira, a empresa só superou esses e outros desafios por causa da união da família. “Meu irmão mais velho [Gil Nogueira], falecido há 12 anos, conviveu muito com o meu pai. Ele citava uma passagem bíblica da qual meu pai gostava muito, a do ‘feixe de varas’: uma vara sozinha quebra fácil, duas juntas, é mais difícil de quebrar e um feixe de varas talvez não possa ser quebrado. Gil dizia para sempre andarmos juntos, porque se eu sou bom nisso, o outro é bom naquilo. ‘Engraçado é que ele não era um bom empresário’, mas sem ele a empresa e a família não seriam o que são. Ele era o feixe das varas.”
O senhor diz não se considerar um bom político, mas o título de comendador concedido pela Abras não contraria essa autoimpressão e revela que o senhor é visto como um bom “feixe de varas” pelo setor?
Sem dúvida, mas quando digo que não me considero político, é porque não tenho gosto pela atividade, embora reconheça a sua importância, sua essencialidade. Fui o vice-presidente mais longevo da Abras: por 16 anos exerci a função. Fui chamado algumas vezes para presidi-la nesse período, mas só aceitei em 1991. Eu diria que eu não sou político nato, mas estive político algumas vezes e fi z o meu melhor. Eu não me considero político, mas a convivência na Abras, e nas estaduais, desde a primeira hora, é extremamente amistosa e respeitosa. É quase familiar. As entidades supermercadistas lembram o clima da minha casa na adolescência. Era lá que reuníamos os amigos antes de jogos de futebol e festas... Há outro mérito, que nem todas as entidades têm: a alternância no poder. Não há um domínio do corpo diretivo. A alternância de poder traz arejamento para as ideias e desenvolvimento para a entidade. Esse clima e essa alternância não são comuns a todas as entidades.
O senhor está no associativismo desde o fim da década de 1960 e ajudou a fundar a Amis. Mudou muita coisa de lá para cá?
Os empresários do setor hoje entendem melhor qual é o papel de uma entidade de classe. Eu comecei na Abras dois anos depois de ela ter sido fundada e ajudei a fundar a primeira associação supermercadista estadual do País, a de Minas [Gerais], a Amis, em 1971. Eu vivi intensamente a falta de compreensão do que é uma entidade de defesa classista. Antes, muito mais do que hoje, apareciam companheiros na associação que diziam: “Precisamos derrubar a concorrência e trabalharmos juntos a parte comercial da nossa empresa”. Nada disso. Cada um tem a sua parte comercial e deve tratá-la internamente. A associação não é local para esse tipo de discussão. As associações são feitas de colegas de atividade, não de concorrentes de mercado. É um paradoxo, mas é a realidade. Na rua somos concorrentes, competidores, mas nas entidades somos colegas de atividade, buscamos o mesmo caminho. Muitas crises ou dificuldades no ambiente associativo são fruto da incompreensão do que é uma associação. O segundo presidente da Abras, João Carlos Paes Mendonça, dizia: “Quero que o meu concorrente morra, mas quero que o meu colega de atividade tenha muita saúde e viva bem para mostrar para mim que eu não estou no ramo errado, que eu estou no ramo de gente em crescimento e desenvolvimento”.
Quais foram os períodos mais críticos da sua atuação como dirigente de entidade de classe?
Eu presidi a Amis de 1981 a 1987 e vivi o Plano Cruzado. Tive três processos criminais, fui acusado de crime contra a economia popular. Lembro-me de quando os problemas começaram por causa do Plano Cruzado. Nossa empresa tinha 21 lojas e eu estava em uma reunião com executivos da companhia no dia seguinte ao anúncio do plano. De repente o telefone começou a tocar e eram pessoas me avisando que gerentes estavam sendo presos em lojas de supermercados do Estado de Minas. Quando eu soube da prisão do quinto gerente num espaço tão curto de tempo, eu interrompi a reunião e fui para a Secretaria de Segurança do estado onde estavam os detidos. Como representava a classe, fui processado pelo governo e condenado, em primeira instância, a um ano e meio de prisão. Não fui preso porque em segunda instância, quando o clamor popular já havia acabado, a Justiça, de forma sensata, extinguiu todos os processos por crime contra a economia popular.
O senhor presidiu a Abras também num momento delicado para o País, não?
Assumi a Abras em janeiro de 1991, pouco menos de um ano depois que Collor confiscou a poupança dos brasileiros. Novamente, o momento não era favorável. Depois o Collor foi deposto e o Brasil viveu naqueles anos profundas mudanças positivas. Durante a minha gestão, eu peguei o início dos debates, a construção e a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, e participei ativamente das reuniões e dos fóruns. Eu percebia que assustava bastante os pares nas reuniões, quando concordava com medidas em prol dos consumidores. Eu acreditava que o varejo ganharia muito em qualidade com o Código e minhas expectativas se confirmaram. Ele não trazia exigências descabidas. Exigia da indústria que melhorasse a qualidade dos produtos ofertados e que os varejistas cuidassem da validade dos produtos. Também não era descabido obrigar o varejo a trocar o produto caso o cliente não ficasse satisfeito. Esse é um tema que me encanta e diz muito sobre a alma do varejo. Sinceramente, acho que por qualquer motivo, não importa qual, se o cliente estiver insatisfeito, a loja tem de trocar o produto vendido ou recompensar o cliente de alguma forma.
Há muita oposição a essa maneira de enxergar a relação com o consumidor?
Encontro oposição em minha própria empresa quando digo que a gente tem de trocar o produto, mesmo no caso de um cliente chegar à loja com uma garrafa de vinho de R$ 300 pela metade, dizendo que o vinho está estragado. O gerente da loja não tem que duvidar nem experimentar o vinho, até porque o gerente não é especialista em vinho, é especialista em atendimento. Se o cliente disse que está estragado, o gerente tem de perguntar: “O que o senhor quer? O dinheiro ou outra garrafa?”. Não estou inventado nada. A Sears, que foi a maior rede de varejo da década de 1920 até a década de 1990, e ainda é bem representativa, tem um slogan: “Satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta”. Eu testei a Sears: comprei um equipamento, testei, não gostei e fui pedir meu dinheiro de volta. O vendedor pegou o produto e disse: “O senhor quer outra coisa?”. Eu disse que não, que queria o meu dinheiro. Ele foi, pegou meu dinheiro e me devolveu, sem falar nada. Eu não havia levado sequer a caixa e ele não disse que não trocaria por eu não ter trazido a caixa. O ganho que esse tipo de conduta gera para a imagem da empresa é inestimável.
E as perdas que se pode ter com essa conduta?
Gente mal-intencionada é minoria. Além disso, casos desses não acontecem sempre. Mesmo os valores, não costumam ser altos. O que são R$ 10 ou R$ 20 perto da conquista do cliente... Quando eu faço essa pregação na loja, muitos funcionários me perguntam: “Seu Levy, eu peguei um cliente roubando na seção de bebidas. O senhor acha que ainda assim ele tem sempre razão”. Eu digo: “Você não pegou um cliente, você pegou um marginal e você deve chamar a polícia para ele, porque nós não podemos detê-lo. Mas esse não é cliente”. Eu entendo a preocupação das pessoas e é bom ponderar que o equilíbrio é a essência de qualquer atividade. Nós vivemos num regime capitalista que pressupõe lucro para as empresas, desenvolvimento e crescimento, mas se eu só busco o lucro, sem servir, vou perder e em breve não terei lucro nenhum. Se eu não lucrar e só servir, em breve não poderei mais servir, porque minha empresa terá quebrado e sem dinheiro, não sirvo. Então, preciso servir para lucrar e lucrar para servir.
Que empresa de varejo ilustra bem esse casamento entre serviço prestado e obtenção de lucro?
Há uma empresa nos Estados Unidos, a Stew Leonard’s, que trabalha exclusivamente com alimentos. Ela está no Guinness Book, como a empresa de maior venda por metro quadrado. Na minha gestão na Abras, nós a visitamos. São três lojas grandes. O fundador da companhia [Charles Leo Leonard] colocou uma pedra à frente de cada uma das lojas e gravou nelas os seguintes dizeres: “Regra nº 1: O cliente sempre tem razão/ Regra nº 2: Se o cliente estiver errado, releia a regra nº 1”. Por exemplo, na seção de laticínios, o cliente vê como o leite é processado até chegar às gôndolas. Há também uma vaquinha Jersey nessa seção e pessoas vestidas de animais alusivos a outras seções circulam pela área de vendas. Isso cria um clima familiar e aconchegante para o cliente. Para mim, a Stew Leonard’s sintetiza o espírito ideal de qualquer varejo, principalmente o de alimentos, ainda mais porque estamos ligados às necessidades mais básicas do ser humano e devemos estar perto dos clientes.
Como gestor de empresa de varejo há mais de 40 anos, é possível dizer quais são os formatos do futuro?
Havia um político mineiro que dizia que política é como nuvem: você olha para ela agora e ela tem um formato, olha daqui a pouco de novo e ela já está com outro formato. O mesmo vale para o mercado, que assim como a política, continua, em essência, o mesmo, mas muda de “formato” [desenho] permanentemente. Aqueles que estão atentos ao fato de que não há ideia definitiva que vingará e vigorará por todo o tempo se adaptam mais facilmente. Para mim, o importante, independentemente do formato, é que o varejo seja verdadeiro: que verdadeiramente leve vantagem ao consumidor, porque só assim ele continuará a frequentar sua loja também nos momentos menos favoráveis... Eu sempre enxerguei que todos os formatos têm o seu lugar. Agora, de fato, há períodos mais atrativos para esse ou aquele formato. Por exemplo, o atacarejo está no seu momento e ainda dispõe de muito espaço para crescer. A grande sacada do atacarejo é levar aos consumidores [além de vender a dois públicos: consumidor final e pequeno comércio], de maneira mais econômica, produtos de consumo imediato. Nossa atividade está 80% calcada em servir a comunidade em sua necessidade de consumo imediato.
É possível dizer que o e-commerce é uma tendência para a venda de alimentos?
A venda digital é uma realidade para muitos varejos, para nós [supermercadistas] é insignificante, para não chamar de inexistente. O consumidor, especialmente a consumidora, quer escolher a maçã, não quer que alguma pessoa faça isso por ela. Quer conversar com o açougueiro sobre o corte para o almoço. Por mais que a vida da mulher esteja passando por grandes transformações, ainda assim ela quer esse atendimento. Haja vista as lojas de alto padrão, que se diferenciam justamente pela oferta de serviços, atendimento ao cliente e que cada dia crescem mais... Aliás, mais uma vez o aparente paradoxo, também entre os formatos. Crescem as lojas de alto padrão e crescem também os atacarejos, que se destinam ao público de menor poder aquisitivo. Cresce o comércio sofisticado e cresce o comércio simplificado.
*Wagner Hilário é subeditor da revista SuperHiper, publicação Abras.